domingo, 6 de fevereiro de 2011

Abiogênese

O termo abiogênese (do grego a-bio-genesis, "origem não biológica") designa de modo geral a origem da vida a partir de matéria não viva. No entanto há que se fazer distinções entre diferentes idéias ou hipóteses às quais o termo pode ser atribuido. Atualmente, o termo é usado em referência à origem química da vida a partir de reações em compostos orgânicos originados abioticamente. Idéias antigas de abiogênese também recebem o nome de geração espontânea, e essas foram há muito descartadas pela ciência; consistiam basicamente na suposição de que organismos mais complexos, dos que se observa diariamente, não se originassem apenas de seus progenitores, mas de "matéria bruta".

Geração espontânea

Os primeiros defensores conhecidos das idéias nesse sentido foram Anaximandro, seu pupilo Anaxímenes, e outros como Xenófanes, Parmênides, Empédocles, Demócrito, e Anaxágoras. Sustentavam de modo geral que a geração espontânea ocorria, mas em versões variadas.

O defensor mais famoso dessa hipótese na antigüidade foi Aristóteles há mais de dois mil anos, e em sua versão, supunha a existência de um "princípio ativo" dentro de certas porções da matéria inanimada. Esse princípio ativo organizador, que seria responsável, por exemplo, pelo desenvolvimento de um ovo no animal adulto, cada tipo de ovo tendo um princípio organizador diferente, de acordo com o tipo de ser vivo. Esse mesmo princípio organizador também tornaria possível que seres vivos completamente formados eventualmente surgissem a partir da "matéria bruta".

A idéia era baseada em observações - descuidadas, sem rigor científico atual - de alguns animais aparentemente surgirem de matéria em putrefação, ignorando a pré-existência de ovos ou mesmo de suas larvas. Isso antecedeu o desenvolvimento do método científico tal como é hoje, não havendo tanta preocupação em certificar-se de que as observações realmente correspondessem ao que se supunha serem fatos, levando a falsas conclusões.

Essas idéias sobre abiogênese eram aceitas comumente até cerca de dois séculos atrás. Ainda no século XIII, havia a crença popular de que certas árvores costeiras originavam gansos; relatava-se que, algumas árvores que davam frutos similares a melões, no entanto contendo carneiros completamente formados em seu interior. No século XVI, Paracelso, descreveu diversas observações acerca da geração espontânea de diversos animais, como sapos, ratos, enquias e tartarugas, a partir de fontes como água, ar, madeira podre, palha, entre outras. Cientistas de todos os campos do saber acreditavam, por exemplo, que as moscas eram originadas da matéria bruta do lixo. Já no século XVII Em resposta às dúvidas de Sir Thomas Browne sobre "se camundongos podem nascer da putrefação", Alexander Ross respondeu:

Então pode ele (Sir Thomas Browne) duvidar se do queijo ou da [[madeira se originam vermes; ou se besouros e vespas das fezes das vacas; ou se borboletas, lagostas, gafanhotos, ostras, lesmas, enguias, e etc, são procriadas da matéria putrefeita, que está apta a receber a forma de criatura para a qual ela é por poder formativo transformada. Questionar isso é questionar a razão, senso e experiência. Se ele duvida que vá ao Egito, e lá ele irá encontrar campos cheios de camundongos, prole da lama do Nilo, para a grande calamidade dos habitantes.:
O médico belga J. B. Van Helmont, que posteriormente foi responsável por grandes experimentos sobre fisiologia vegetal, chegou a prescrever uma "receita" para a produção espontânea de camundongos em 21 dias. Segundo ele, bastava que se jogasse, num canto qualquer, uma camisa suja (o princípio ativo estaria no suor da camisa) e sementes de trigo para que dali a 21 dias fosse constatada a geração espontânea.

Essas conclusões errôneas se devem a falta de metodologia apropriada, limitando variáveis que pudessem trazer resultados falsos - como por exemplo, impedir que ratos já formados tivessem acesso à "receita" que supunha-se produzir ratos - aliada ao pressuposto de que a geração espontânea era mesmo possível.

Redi

O primeiro passo na refutação científica da abiogênese aristotélica foi dado pelo italiano Francesco Redi, que em 1668, provou que larvas não nasciam em carne que ficasse inacessível às moscas, protegidas por telas, de forma que elas não pudessem botar lá seus ovos. Em seu "Experiênias sobre a geração de insetos", Redi disse:

Embora me sinta feliz em ser corrigido por alguém mais sábio do que eu caso faça afirmações errôneas, devo expressar minha convicção de que a Terra, depois de ter prodzido as primeiras plantas e animais, por ordem do Supremo e Onipontente Criador, nunca mais produziu nenhum tipo de planta ou animal, quer perfeito ou imperfeito...
Redi então supunha que a geração espontânea teria ocorrido apenas durante os primórdios da Terra. Hipotetizou que o que aparentava ser geração espontânea na verdade era oriundo de ovos serem depositados por moscas no material em putrefação. Admitiu a necesidade de testar essa hipótese. Formulou o experimento então de forma a limitar as variáveis de forma mais cuidadosa, deixando metade dos frascos tampados e outra metade destampada.

No entanto notou que essa metodologia também deixava alguma margem de erro. Enquanto as tampas dos frascos impediam o acesso das moscas, impediam também a renovação no ar no interior dos frascos, talvez então impedindo que o "princípio ativo" propiciasse a geração espontânea dos "vermes". Para dar conta dessa parte do problema, aperfeiçoou o experimento, tampando os frascos com gaze, que permitia a entrada de ar. O resultado foi o mesmo; embora "vermes" não tivessem surgido dentro da carne, por ter sido impedido o acesso das moscas, apareceram vários no exterior da gaze, tentando forçar sua entrada, os quai foram removidos por Redi.

Assim, século XVII em diante foi gradualmente sendo demonstrado que, ao menos no caso de todos os organismos facilmente visíveis, a geração espontânea não ocorria, e que que cada ser vivo conhecido era proveniente de uma forma de vida pré-existente, a idéia conhecida como biogênese.

Needham e Spallanzani

A invenção e aperfeiçoamento do microscópio renovaram aceitação a abiogênese. Em 1683, Anton van Leeuwenhoek descobriu as bactérias, e logo foi notado que não importava o quão cuidadosamente a matéria orgânica fosse protegida por telas, ou fosse colocada em recipientes tampados, uma vez que a putrefação ocorresse, era invariavelmente acompanhada de uma miríade de bactérias e outros organismos. Não acreditava-se que a origem desses seres estivesse relacionada a reprodução sexuada, então sua origem acabou sendo atribuida à geração espontânea. Era tentador hipotetizar que enquanto formas de vida "superiores" surgissem apenas de progenitores do mesmo tipo, houvesse uma fonte abiogênica perpétua da qual organismos vivos nos primeiros passos da evolução surgiam continuamente, dentro de condições favoráveis, da matéria inorgânica.

John Needham, em 1745, realizou novos experimentos que vieram a reforçar a hipótese da vida poder originar-se por abiogênese. Consistiam em aquecer em tubos de ensaio líquidos nutritivos, com partículas de alimento. Fechava-os, impedindo a entrada de ar, e os aquecia novamente. Após vários dias, nesses tubos proliferavam enormes quantidades de pequenos organismos. Esses experimentos foram vistos como grande reforço a hipótese da abiogênese.

Mas em 1768, Lazzaro Spallanzani criticou duramente a teoria e os experimentos de Needham, através de experimentos similares, mas tendo fervido os frascos fechados com sucos nutritivos durante uma hora, que posteriormente foram colocados de lado durante alguns dias. Examinando os frascos, não encontrava-se qualquer sinal de vida. Ficou dessa forma demonstrado que Needham falhou em não aquecer suficientemente a ponto de matar os seres pré-existentes na mistura.

Isso no entanto não foi suficiente para descartar por completo a hipótese da abiogênese. Needham replicou, sugerindo que ao aquecer os líquidos a temperaturas muito altas, pudesse estar se destruindo ou enfraquecendo o "princípio ativo". A hipótese de abiogênese continuava sendo aceita pela opinião pública, mas o trabalho de Spallanzani pavimentou o caminho para Louis Pasteur.

Pasteur

Foi principalmente devido ao grande biólogo francês Louis Pasteur, por volta de 1860, que a ocorrência da abiogênese no mundo microscópico foi refutada tanto quanto a ocorrência no mundo macroscópico. Contra o argumento de Needham sobre a destruição do princípio ativo durante a fervura, ele formulou o experimentos com frascos com "pescoço de cisne", que permitiam a entrada de ar, ao mesmo tempo em que minimizavam consideravelmente a entrada de outros micróbios por via aérea.

Dessa forma, demonstrava que a fervura em si, não tirava a capacidade dos líquidos de manterem a vida, bastaria que organismos fossem neles introduzidos. O impedimento da origem da vida por falta do princípio ativo, também pode ser descartado, já que o ar podia entrar e sair livremente da mistura. O recipiente com "pescoço de cisne" permaneceu nessas condições, livre de micróbios durante cerca de um ano e meio.

A geração espontânea é descartada

Mais tarde, foi descobriu-se que esporos de bactérias estão tão envolvidos em membranas resistentes ao calor, que apenas prolongada exposição ao calor seco, tostador, pode ser reconhecida como processo eficiente de esterilização. Além disso, a presença de bactérias, ou seus esporos, é tão universal que apenas precauções extremas podem evitar a reinfecção de material esterilizado. Foi dessa forma concluido definitivamente que todos os organismos conhecidos surgem apenas de organismos vivos pré-existentes, o que recebe o nome de "lei" da biogênese.

Se todos os seres são provenientes de seus ancestrais, isso conduz logicamente a idéia de ancestralidade comum universal, mas suscita a pergunta de como teria surgido o primeiro ser vivo. A abiogênese - como origem da vida a partir de matéria não viva - deve ser necessariamente assumida a menos que se suponha que a vida tenha sempre existido. Estando essa hipótese descartada, ela deve ter surgido, e de algo que não era vivo. Estando também descartadas as teorias aristotélicas de abiogênese, nos restam os conceitos modernos ainda não conclusivos sobre como exatamente isso teria ocorrido.

Origem química da vida

Os experimentos de Louis Pasteur refutaram a abiogênese aristotélica, ou geração espontânea, mas não dizem nada quanto à origem química da vida - também chamada de biopoeise (do grego bio, vida, + poiéo, produzir, fazer, criar), evolução química, quimiossíntese, ou ainda, biogênese por Teilhard de Chardin. Essa forma de abiogênese supostamente ocorreu sob condições totalmente diferentes, dentro de períodos de tempo muito maiores, não sendo algo que se suponha poder ocorrer a qualquer instante, ou hoje em dia. O próprio Charles Darwin percebeu impedimentos básicos para que isso ocorresse:

Costuma-se dizer freqüentemente que todas as condições necessárias para o surgimento de um ser vivo encontram-se presentes agora como sempre se encontraram. Mas se (e como é grande esse se!) nós pudessemos imaginar que, nos dias de hoje, em alguma poçazinha tépida, com todos tipos de sais amoníacos e fosfóricos, luz, calor, eletricidade, etc., estando presentes, um composto protéico estivesse quimicamente formado e pronto para sofrer mudanças mais complexas, tal composto seria imediatamente devorado ou absorvido, o que não teria ocorrido antes dos seres vivos terem sido formados.
Além disso, diferentemente da abiogênese aristotélica, o conceito atual não propõe a origem espontânea de formas de vida complexas, de algo similar qualquer das espécies atuais, mas em vez disso uma origem mais singular da vida, decorrendo de um complexo processo gradual, com vários estágios. A vida nesses estágios provavelmente diferiria muito das formas atuais a ponto de tornar incerta sua classificação como "vida", bem como a delimitação entre a "vida" e "não vida", de forma similar à situação em que os vírus e príons se encontram hoje.

Nos últimos 120 anos, soube-se que não há diferença entre matéria viva e a "bruta" ou "inanimada". Os seres vivos não são compostos de algo fundamentalmente diferente de outros objetos, nem têm um "princípio ativo" que lhes dá a vida. Carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio são os elementos predominantes dos seres vivos, e também encontram-se fora deles. A vida é uma questão de organização material de compostos formados por esses elementos. A abiogênese então se daria através de processos e etapas que cumulativamente produzissem a organização básica os seres vivos. O químico Friedrich Wöhler, ainda em 1828, demonstrou que compostos orgânicos podem formar-se a partir de substâncias inorgânicas em laboratório. Mais tarde, os químicos descobriram que os principais "tijolos" da vida, aminoácidos, nucleotídeos e lipídios, podem todos se formar, bastando existirem fontes de carbono, nitrogênio, e energia.

Não há uma teoria apenas para o processo, mas várias diferentes possibilidades, sem que qualquer uma seja grandemente vista como definitivamente melhor que a outra, apesar de haverem as que são mais populares. De grande valor histórico pode-se citar a teoria da "sopa primordial", do cientista russo Aleksandr Ivanovitch Oparin, com ideías similares às formuladas independentemente por J. B. S. Haldane, ambos na década de 1920. Hipotetizavam que uma série de reações envolvendo a suposta química atmosférica na Terra primordial culminariam com a origem da vida.

Hipótese Oparin-Haldane

Segundo Oparin, em ambiente aquoso, compostos orgânicos teriam sofrido reações que iam levando a niveis crescentes de complexidade molecular, eventualmente formando agregados colóides, ou coacervados. Esses coacervados seriam aptos a se "alimentar" rudimentarmente de outros compostos orgânicos presentes no ambiente, de forma similar a um metabolismo primitivo. Os coacervados não eram ainda organismos vivos, mas ao se formarem em enormes quantidades, e se chocarem no meio aquoso durante um tempo muito longo, eventualmente atingiriam um nível de organização que desse a propriedade de replicação. Surgiria aí uma forma de vida extremamente primitiva.

Haldane supunha que os oceanos primordiais funcionassem como um imenso laboratório químico, alimentado por energia solar. Na atomsfera, os gases e a radiação UV originariam compostos orgânicos, e no mar formaria-se então uma sopa quente de enormes quantidades de monômeros e polímeros. Grupos desses monômeros e polímerios adquiririam membranas lipídicas, e desenvolvimentos posteriores eventualmente levariam às primeiras células vivas.

Estavam ao menos parcialmente corretos, quanto a origem de aminoácidos e outros tijolos básicos da vida, como comprovou-se com o experimento de Urey-Miller, em 1953, que simulava essas condições atmosféricas, e o de Juan Oró em 1961. Os experimentos foram repetidos com diversas atmosféricas hipotéticas, sempre obtendo resultados similares.

Posteriormente, Sidney Fox levou o experimento um passo adiante fazendo que esses tijolos básicos da vida se unissem em proteinóides - moléculas polipeptidicas similares a proteínas - por simples aquecimento. No trabalho seguinte com esses aminoácidos e pequenos peptídeos foi descoberto que eles podiam formar membranas esféricas fechadas, chamadas de microesferas. Fox as descreveu como formações de protocélulas, acreditando que fossem um passo intermediário importante na origem da vida. As microesferas tinham dentro de seu envoltório um meio aquoso, que mostrava movimento similar a ciclose. Eram capazes de aobsorver outras moléculas presentes no seu ambiente; podiam formar estruturas maiores fundindo-se umas com as outras, e em certas situações, destacavam-se protuberâncias minúsculas de sua superfície, que podiam se separar e crescer individualmente.

As pesquisas nesse sentido não pararam por aí, sendo ainda muito importantes os experimentos e hipóteses levantadas por nomes como Manfred Eigen, Sol Spiegelman, Thomas Gold, A. G. Cairns-Smith, e uma série de outros trabalhos mais atuais.

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